origem

sábado, 30 de outubro de 2004

A jangada



Faz hoje exactamente 28 anos que nasceu um menino, numa casa típica dos típicos montes alentejanos, orgulhosa da sua palidez e rodapé azul. Empoleirada lá no alto, recebeu de braços abertos aquela vida que agora nascia.

Naquela madrugada fria de Outubro, aquele novo ser achou que era tempo de espreitar o mundo que sabia existir cá fora. Por muito confortável que seja o útero materno, a curiosidade despertada por todo aquele alvoroço que se fazia sentir e a vontade de conhecer coisas novas, foi maior.

Nasceu lindo. Cabelos loiros de um amarelo brilhante como as searas do seu Alentejo, olhos animados e curiosos próprios de uma criança ainda à descoberta de um mundo novo.

Era o orgulho dos seus pais. Uma nova vida com toda uma nova existência à sua frente. Podia mudar o mundo, podia ser tudo aquilo que ambicionasse, neste novo país que tinha redescoberto a liberdade havia apenas dois anos.

O tempo foi passando, ano após ano e o menino foi crescendo. Todos os dias que nasciam lhe davam oportunidades para aprender coisas novas, descobrir tudo aquilo que ainda não conhecia. Brincou, sorriu, chorou, fez as traquinices próprias de uma criança e foi feliz. Aprendeu a viver, a distinguir o bem do mal, teve amigos, alguns inimigos e formou a sua personalidade.

Algures entre o dia do seu nascimento e o momento actual, perdeu o norte e sentiu-se perdido. Desapareceu o brilho no olhar, o sorriso maroto que o acompanhava nas suas descobertas. Durante algum tempo vagueou pela vida como um espectro sem objectivo. Com o passar do tempo acabou por desistir de encontrar o seu caminho, pensando que talvez fosse muito tarde ou que se tivesse afastado demais do rumo certo. Já não valia a pena.

Neste caminho sem rumo, nem se apercebeu do dia em que, num verão como tantos outros, um anjo se cruzou no seu caminho. Esse encontro permitiu-lhe descobrir que os amigos que pensava existirem apenas nos filmes que via ou nos livros que lia e que tanto o encantavam, também existiam na realidade. Soube, pela primeira vez, o que era amar um amigo, dar sem esperar receber, exprimir sentimentos sem temer consequências e emocionou-se com a confiança que esta nova pessoa na sua vida depositou em si.

O que o menino não sabia era que a vida nunca desiste de nós, mesmo que abdiquemos dela e que, quando parece que tudo chegou ao fim e nada mais vale a pena, basta um momento, um gesto, um sorriso, para que tudo volte a ter significado.

Olhando em volta, descobriu que afinal valia a pena. Percebeu que, no meio daquele mar de desencanto em que se encontrava, flutuava uma jangada. Agora, a salvação dependia apenas de si. Era a ele que competia agarrar a jangada e flutuar de volta ao caminho que tinha sido idealizado pelos seus pais há tantos anos atrás. Tomou consciência de que tinha tido sempre – mesmo que não o tivesse percebido – tudo o que precisava para ser feliz. Tinha o amor dos seus pais, que sempre tinham estado do seu lado por muito perdido que estivesse. Tinha o amor da sua irmã, que nunca o abandonou mesmo nas piores horas. Tinha agora uma amiga verdadeira, que nunca pensou encontrar.

Nesse momento, tudo se tornou claro para si, e agarrou a jangada. Remou contra a maré de contradições que o assolava, rumou de volta à calmaria.

Hoje, o menino cresceu, tornou-se adulto. Voltou a ter o brilho no olhar, o sorriso maroto de menino loiro. A beleza já não conseguiu recuperar – a vida tem destas coisas e o tempo nem sempre é favorável. Agora, o menino, já homem, é feliz, e agradece todas as coisas boas que foi conseguindo, todas as que sempre teve e não conseguiu perceber.

Por vezes recorda o mar revolto e tem medo. Medo que uma onda mais forte o leve de volta a esse lugar escuro e medonho em que um dia se viu cingido. Nessas alturas, procura o aconchego dos amigos, da família e volta a sentir-se seguro. Afinal, a jangada sempre esteve ali tão perto, bastava ter procurado.

Aos meus pais, à minha irmã e à melhor amiga do mundo, obrigado por serem a minha jangada.

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